“Quando a gente vai falar de racismo ambiental, as pessoas não querem ouvir e ainda acham que a gente é doida”, diz Maria Lúcia Oliveira, da comunidade ribeirinha Boa Esperança, de Teresina, no Piauí. Maria Lúcia, líder comunitária e do “Movimento Lagoas para Quem?”, questiona nesta entrevista a implantação do projeto turístico Programa Lagoas do Norte da prefeitura de sua cidade.
Tatiane Matheus*
Há cerca de uma década, a região da zona norte de Teresina entre os rios Poti e Parnaíba tornou-se motivo de um litígio entre moradores da comunidade Boa Esperança e a prefeitura municipal. O governo diz que a estrutura do lugar oferece risco de galgamento (transposição de uma estrutura por uma massa de água) que pode afetar a população local, enquanto os moradores rebatem que a intenção do plano é, na verdade, a gentrificação do local (mudanças do espaço urbano em que áreas periféricas são transformadas em espaços nobres com expulsão da população tradicional).
De acordo com uma reportagem da Ponte Jornalismo, as primeiras casas começaram a ser construídas ali há meio século. A região sofreu duas enchentes, em 1965 e 1985. Durante a segunda enchente, os moradores planejaram uma estrutura para que os imóveis não sofressem novamente com alagamentos. Nos anos 80, o local era um polo de olaria (produção de telhas e tijolos de barro) com condições insalubres de trabalho. Até 1983, não tinha luz elétrica, e a água encanada só chegou quase ao final da década de 1980.
A história traz nuances de questões que passam despercebidas quando olhamos o problema apenas como um litígio relacionado a um pedaço de terra. Para entender o ponto de vista de quem vive lá, conversamos com a líder comunitária Maria Lúcia Oliveira, do Centro de Defesa Ferreira de Sousa e do Movimento Lagoas para Quem? – que participou do webinar sobre Habitação para Retomada Verde Inclusiva, projeto do ClimaInfo, com apoio do Observatório do Clima e do GT Infraestrutura.
“Revelar a história é fazer justiça. Por que nós duas estamos conversando aqui? Porque nós temos a ciência e a consciência. Foi despertada a nossa consciência sobre o que os nossos antepassados fizeram. Então, a gente não pode deixar morrer essa história. A gente não pode ser governada por príncipes e princesas a nossa vida toda, não”, diz a líder comunitária Maria Lúcia Oliveira.
Ao ser questionada sobre a origem do lugar e seus problemas, Lúcia sai em busca do “Empoeirado”, apelido que ela deu ao seu sobrinho – pesquisador e professor, formado em História e Turismo. Não é à toa que “colocamos os nossos mais novos para estudar, nem que a gente ‘morra’ de trabalhar”, explica Lúcia, dizendo que é a geração de seu sobrinho que dá hoje o suporte à comunidade. Na sua infância, ela e os demais trabalhavam na olaria: “Não tinha escola. Tinha que ir muito longe para estudar. Trabalho infantil cansa, a gente preferia brincar ou dormir quando tinha descanso”.
Talvez o “Empoeirado” esteja em alguma biblioteca para justificar a alcunha que sua tia lhe deu. Não resta alternativa à Lúcia. Ao começar a contar a história de sua comunidade, surpreende, pois volta ao tempo do Brasil Colônia, quando a tribo indígena Potí foi dizimada pelos colonizadores portugueses. Depois, as pessoas negras escravizadas foram trazidas por Saraiva (José Antonio Saraiva, presidente da Província do Piauí) ao local para construir a nova capital, Teresina (em 1852). A antiga, Oeiras, ficava longe do rio Parnaíba, o que prejudicava os negócios com o restante do império. Os negros escravizados fizeram suas casas onde hoje é a comunidade de Boa Esperança, onde viviam plantando e pescando.
Relata ainda que a arquitetura da cidade – construída por pessoas escravizadas – foi sendo destruída ao longo do tempo. Nos anos 70, Lúcia conta que o governo militar ateava fogo nas casas das pessoas pobres para fazer com que elas saíssem do local. “E [nos anos 2000] a gente começou a ter as nossas casas seladas e invadidas por eles”, conclui Lúcia, deixando seu ponto de vista crítico ao Projeto Lagoas do Norte, de requalificação urbana e de reassentamento de área da cidade, que propõe retirar aquela população da região que leva o nome do plano para outro bairro da cidade.
“Quando a gente vai falar de racismo ambiental, as pessoas não querem ouvir e ainda acham que a gente é doida”, Maria Lúcia Oliveira
“Se o racismo é negado no Brasil todo, aqui não é diferente”, afirma Lúcia contando que ainda existe uma relação de provincianismo no local, desabafando que é muito difícil encontrar documentos da história dos negros e indígenas. “Os relatos históricos feitos por homens brancos são de dar nojo, quando falam que somos [negros e indígenas] preguiçosos e marginais.” Para ela, o problema continua igual séculos depois e o que a sua comunidade vive na atualidade se chama racismo ambiental. “Quando a gente vai falar de racismo ambiental, as pessoas não querem ouvir e ainda acham que a gente é doida”, comenta Lúcia.
A ativista reclama que, desde que a prefeitura transferiu o tráfego pesado de automóveis, e com a derrubada de árvores, os animais correm para a avenida e morrem atropelados. “A natureza se transforma. Nós temos essa consciência na nossa comunidade. A gente tem que sair por meio da natureza. O animal só come o que precisa. A gente vai acumulando, estragando as coisas na geladeira e negando as coisas para os outros”.
O ser humano é muito mesquinho”, divaga Lúcia e ainda enfatiza: “A primeira coisa que você faz quando quer matar uma pessoa é destruir a sua cultura, para fragilizar ela (sic)”. Essas comunidades (tradicionais) têm uma relação diferente com o meio ambiente e, por isso, conseguem preservar, ao contrário da lógica de explorar e depois ir para outro lugar após já terem dizimado tudo. Lúcia reclama que a cidade de Teresina, mesmo na zona nobre, tem enchentes porque impermeabilizaram o local.
“Eles precisam parar de destruir a natureza. Estão dragando os rios. A gente reflorestou. A mata ciliar é como os nossos cílios. Ela segura a barragem do rio. Eles estão acabando com a dragagem e as árvores estão caindo no rio porque não têm como se sustentar. A parte que nós reflorestamos não tem coroa, está perfeita”, conclui Lúcia.
O racismo não é só um comportamento, mas é um processo histórico e político. No documentário Interfaces do Racismo: racismo ambiental, a socióloga Cindia Brustolin explica que é muito diferente como a sociedade brasileira reage à Quilombolas e Povos Indígenas. Para ela, tudo o que essas comunidades conseguem produzir é desqualificado. E, mesmo quando há uma legislação séria em relação aos empreendimentos, ela não é implantada.
De acordo com a socióloga, nestes mecanismos, o racismo ambiental está presente, ou seja, na não possibilidade de se valorar as coisas da mesma forma que os demais. Apesar desses povos terem toda uma dificuldade de se constituírem como sujeitos de direitos, a sua fala é deslegitimada quando eles exatamente buscam esses direitos.
*Tatiane Matheus é pesquisadora no ClimaInfo e é membro do Grupo de Trabalho Gênero & Clima do Observatório do Clima.
Originalmente publicado em: https://climainfo.org.br/2021/02/17/racismo-ambiental-no-piaui/
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